31 outubro 2008

Jaume Cabré, As Vozes do Rio Pamano, Tinta da China

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         A história nunca se conta de um só lado, e às vezes passam-se muitos anos até que se conte, sequer. A relação da literatura espanhola (englobando-se aqui a das suas autonomias, à falta de melhor designação) com a Guerra Civil de Espanha assim o confirma, e só nos anos mais recentes é que o tema se tornou recorrente, como se tivesse chegado a altura em que a reflexão já é possível sem demasiados ódios e em que a literatura pode ocupar-se da melhor maneira dessa mesma reflexão.
         Numa aldeia catalã, no início do século XXI, uma professora encontra os manuscritos de um mestre-escola que o Vaticano se prepara para canonizar, elogiando o seu martírio às mãos dos maquis que combatiam a ditadura. Os textos de Oriol Fontelles, que morreu odiado por parte considerável da aldeia, revelam uma história diferente, marcada pelo auxílio, em segredo, aos mesmos maquis que o teriam morto. Que esse auxílio tenha nascido de uma série de contingências, mais do que de um gesto de heroísmo convicto, só contribui para se perceber que o romantismo e a criação de heróis impolutos interessam menos a esta narrativa do que o sentido da vida daqueles que, de repente, se viram no meio do fogo e não puderam esconder-se.
         A determinação da professora em restituir a verdade, e em cumprir o desejo do mestre-escola de que os textos chegassem às mãos da sua filha, estrutura uma narrativa fragmentada, onde passado e presente se cruzam nos mesmos espaços e onde o tempo se encarrega de equilibrar a justiça de algumas revelações com a impossibilidade de repor uma verdade, absoluta e convertida em nova memória. É o leitor o único privilegiado com o acesso a essa verdade, a partir da paciente colação dos fragmentos da narrativa. E mesmo sabendo que o pacto ficcional não substitui a releitura da história, essa oferta não é inocente numa saga que, para além do ódio e brutalidade que a guerra produziu, descreve exemplarmente o modo como a falsificação da história se transforma, demasiadas vezes, na própria história.

Sara Figueiredo Costa

(Texto publicado na revista Time Out nº56, 22 Outubro 2008)

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